Era celebração de ano novo e o clima era de festa na sede da ATINI. A noite estava estrelada e o cheiro de flores enchia nossa aldeia-chácara. Suzuki, Hakani e eu entramos no nosso centro de convenções e ficamos impressionados com a quantidade de gente. Mas a construção imponente, inspirada na estrutura circular das malocas ianomâmi, era robusta e permitia uma visibilidade completa a partir de qualquer ponto.
Os instrumentos musicais indígenas estavam todos colocados na praça central que ficava bem no meio da construção - flautas kamaiurá, tambores guarani, chocalhos caiapó. Havia um lugar reservado bem perto da praça central para as crianças com necessidades especiais. Vimos também que as menininhas xinguanas que sofrem de distrofia muscular estavam bem acomodadas em suas cadeiras de rodas, perto da fogueira principal. Suzuki achou muita graça quando viu que tinha uma ala inteira só para gêmeos - e que os estudantes indígenas não paravam de tirar fotos deles com seus celulares.
Bem no meio da praça central havia um espaço iluminado reservado para o tradicional patawi dos sateré. O patawi é um suporte de cipó usado para acomodar a cuia de guaraná. Ele representa Tupana, o Criador, que deve ocupar o lugar central em nossos pensamentos. Dentro da cuia do patawi havia uma boa porção de guaraná. A gente já sabe bem como funciona - o patawi fica ali no centro durante todo o tempo da celebração. Aos poucos as pessoas vem uma a uma, sem alarde, beber o guaraná. Naquela noite eles vinham em silêncio, se ajoelhavam e sorviam com reverência a bebida sagrada. Muitos saíam dali enxugando as lágrimas, tocados pela suave presença de Tupana. E as mulheres ficavam sentadas ali por perto, ralando sem parar os bastões de guaraná. Assim a cuia do patawi nunca ficava vazia, como símbolo da generosidade do Criador, que não acaba nunca.
Primeiro cantaram os suruwahá, e suas vozes afinadas encheram o lugar com a inconfundível presença de Zama Una, o Deus Santo. Depois os xinguanos tocaram suas flautas e as mulheres maioruna dançaram. Hakani ficou encantada com o coral das crianças com deficiência auditiva, vindas de diversas tribos. Elas entoaram um cântico gestual usando a língua de sinais desenvolvida pelos índios gavião. Os gestos delicados combinavam perfeitamente com as pinturas faciais e com os enfeites de penas branquinhas, feitos pelas mulheres da tribo ingaricó.
Depois vieram os discursos - festa indígena não tem hora prá acabar e índio adora fazer discurso. Falaram os caingangue, depois os mundurucu, os xacriabá e os culina. Cada discurso era traduzido com perfeição pelos estudantes indígenas, que estavam cursando linguística e se aprimorando na arte da interpretação. Alguns oradores eram anciãos tribais, outros eram jovens profissionais - advogados, antropólogos, pedagogos, jornalistas e médicos – homens e mulheres, das mais diversas tribos. Cada discurso era pujante, afiado, mas vinha temperado com humildade e gratidão.
No final Eli Ticuna falou, vestindo a bata cerimonial dos índios axaninca do Acre. Sua mensagem falava de liberdade, de reconciliação e de transformação social. Enquanto ele falava sobre “não trocar o dom da primogenitura por um prato de comida”*, os sussurros e os gestos de aprovação brotavam de todos os lados, como uma chuva que se aproxima na mata.
Lá pelo meio da madrugada começou a celebração da ceia. Havia uma montanha de beijus de mandioca, cestos e cestos de peixe assado, além dos bolinhos de milho e do vinho de pajuaru. Parecia um banquete. Mais do que isso, parecia um sonho!
E era sonho mesmo. A era do Reino é a era dos sonhos, como bem disse o profeta (Joel 2.28). É esse o Brasil que queremos. É assim que estamos entrando no ano novo, cheios de sonhos e com o coração repleto de gratidão e de expectativa. Vamos continuar sonhando juntos. Feliz 2010!
Márcia e Suzuki
*Segundo o relato bíblico, Esaú, na hora da fome, trocou o “dom da primogenitura” por um prato de lentilhas (Gn 25.29-32 ) O dom da primogenitura representa tanto a herança quanto as responsabilidades de Esaú como filho mais velho. Na construção da Nação Brasileira, os povos indígenas, como primeiros habitantes, são donos de uma valiosa herança. Mas além disso, possuem todas as responsabilidades de “filho mais velho”.
Hoje muitos estão aprendendo que o dom confiado a eles pelo próprio Criador não é negociável. Nem a distribuição de cestas básicas e vales-refeição, nem privilégios efêmeros como preferência na fila do SUS e passagens de graça, nem mesmo promessas de emprego, dão a quem quer que seja o direito de exercer patrulha ideológica sobre as escolhas e sobre a consciência deles. Nada, nem ninguém, pode comprar a dignidade, a consciência e a liberdade dos povos indígenas. Essa liberdade está sendo redescoberta e resgatada por eles através de um novo modelo de indigenismo - um indigenismo do Reino.
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